Scupa 121

Testemunhos

João Feijão

1º de Maio, banco de jardim, no separador central da Avenida dos Pescadores, junto à SCUPA. Em frente ao Nº110, precisamente em frente à casa onde nasceu, João Feijão, 88 anos:

“Era aquela janela do lado direito. Só aquela. A outra era p’ró 1º andar… agora é tudo da mesma”.

“Nasci num meio de Pescadores, com quatro anos comecei a acompanhar. Nunca pude ir à escola. Os outros iam para a escola e eu ia para o Mar. Esta escola aqui mesmo, que é agora o Museu.”

“Uma vida muito dura… ainda bem que hoje não é assim.” O seu olhar transmite mais do que em qualquer outra vez, o porquê de ser assim, quando diz: “…os lençóis, as mantas… tá a perceber… eram as redes.”

“O Abílio era meu irmão. Morava ali mesmo ao lado da Casa. Tinha três irmãs e dois irmãos. O Abílio era o Sócio Nº1.”

“Eu servi a Casa mais de 40 anos, com vários Presidentes. O Tenreiro era quem mandava no Mar na altura. Não gostava da gente. Dizia que a gente matava o peixe miúdo. Mas com a gente houve sempre peixe no Mar… e hoje … onde é que está as enguias? Acabou com a arte do cerco e a gente ficou parados, à fome. Fome mesmo. Era a arte que a gente sabia trabalhar. Certo dia a gente convidou e trouxe aqui o Tenreiro. Ele perguntou quem é que o recebia, a gente disse que era a Câmara e a Câmara recebeu… depois veio aqui. O homem subiu à Casa, e nós tínhamos posto uma fotografia dele no cimo da escada. O homem quando encarou com aquilo até chorou! Ficou a ver a gente de outra maneira. Até deixou um cheque de cem contos. E mais tarde ajudou outra vez, só que tivemos de levantar o cheque na Junta, porque deu-se o 25 de Abril e ninguém pagava o cheque.”

“Eu andei ainda um tempo lá fora da barra, com o Marcelino. Na Barca que é agora da Câmara, a Lubélia Maria. Lá fora era duro, muito duro, mas dava mais qualquer coisa.”

“Muita gente ajudou a Casa. O Lupi recebia sempre um convite para o Almoço da Casa (Dia S. Marçal). Íamos lá requisitar vinho ou outras coisas, e era logo tudo “sim senhor”. Era a D. Leopoldina que tratava, uma grande senhora. O Lupi chegou a pôr aí à porta uma carroça com uns tonéis para a malta beber o que queria. Agora faleceu a filha dele, a Rosa. A Casa enviou as condolências, fez muito bem. Eram pessoas sempre convidadas, pois ajudavam muito a Casa, e vinham sempre. Ainda até à pouco se enviava um convite à viúva do Beatriz. Uma vez tínhamos de partir uma parede para fazer ali um salão mais amplo, e convidamos o Beatriz e o Lupi. Não foi peixe, foi um ensopado de borrego. Fiz eu, que felizmente sei cozinhar bem até hoje, só têm de me ajudar com a loiça. Ninguém queria pedir uma ajuda, a malta teve vergonha. Até o  Presidente disse: “epá eu não sou capaz”. Eu disse, deixem estar que eu falo com o homem. Chamei o Beatriz e disse que precisava falar com ele mas… ali, naquela sala (actual secretaria). Sr. Beatriz, queria falar consigo… Expliquei-lhe que tínhamos de fazer aquela obra, mas que aquilo importava muito dinheiro, e que precisávamos de ajuda… Ele perguntou: “mas isso importa mais ou menos quanto?” Cento e cinquenta contos. Ele chamou o Lupi e disse:  – Os Homens têm de fazer aqui uma obra, e precisam de ajuda. – Pois muito bem, e a gente ajuda. Deram setenta e cinco contos cada um. “

“Esta Direção, uma vez pediu-me para ir lá levar um convite, porque não se sentiam à vontade. Eu disse logo: vamos embora. Fui lá com eles na carrinha da Casa, e assim é que tem de ser!”

“Antigamente houve períodos muito maus. A segunda guerra. Era fome, fome mesmo. Uma vez fomos pedir ajuda ao Santos Fernandes. Era Almirante. Era dono aqui da Quinta do Páteo d’Água, que mais tarde doou à Camara. Fomos lá falar com ele. Ajudou muito a malta. Passou a haver todos os dias, naquele período, sopa feita pelos nossos velhos ali na Casa. A malta ia ali ao beco. Aquilo dava para o quintal, onde nas casas do forno, lá ao fundo era feita a sopa para distribuir por todos. Tudo por conta do Santos Fernandes.”

“A SCUPA foi para muitos, a segunda casa. Ainda hoje tenho pena de me custar subir lá acima. Por causa das escadas. As pernas os braços. A cabeça, essa está bem. Ainda faço a minha comida, gosto muito de cozinhar. Eu é que compro tudo, a minha filha só vai buscar porque eu não consigo carregar. A minha filha é a melhor coisa… se não fosse ela, ia ser muito difícil para mim.”

João Luís Pereira Feijão
Data Nascimento: 23/03/1931
Data Falecimento: 13/09/2021

Entrevista para o Jornal da Scupa

Francisco Nunes

Francisco Gaspar Nunes nasceu no Montijo, a 20 de setembro de 1935. Quando tinha 2 anos, a mãe faleceu. Passados três anos do falecimento da mãe, o pai contraiu matrimonio com uma senhora do bairro, formando uma nova família.

Francisco Nunes frequentou a escola até aos 12 anos de idade, tendo feito a 4ª classe, após a qual, foi para a pesca com o pai e outros familiares. Permaneceu nesta atividade até 1962, ano em que integrou os quadros da Sociedade de Transportes Marítimos, como marinheiro de segunda. Após 4 anos em exercício, foi promovido a marinheiro de primeira e, mais tarde, em 1987, foi nomeado mestre de tráfego local, reformando-se em 1999.

Francisco Nunes menciona que a atividade piscatória é sazonal e diz que: naquele tempo, a maioria dos pescadores… era assim: trabalhávamos de Verão, de março a outubro, nos cercos, e, durante o Inverno… aí, vá lá, uns 20% que andavam na pesca. Francisco Nunes foi para o rio aprender as artes da pesca com o pai, acompanhou o pai desde cedo, como relata: “Quando fiz o exame da 4ª classe, o meu pai estava no mar e faltava 5 dias para vir para terra, já estava lá há 10 dias.

Francisco Nunes descreve como decorria a arte do cerco, especificando a vertente alimentícia da companha: No primeiro dia, nós levávamos daqui da sede (SCUPA) bacalhau. Era logo ao almoço bacalhau… Ao almoço era assim, faziam sopa de bacalhau… O bacalhau era desfiado, como se fosse bacalhau de caldeirada, depois, fazia-se a sopa… lá se punha mais água e fazia-se a sopa. Depois, punha-se as batatas por cima da sopa para fazer caldo (…) Depois, tirava-se o bacalhau que estava cozido à parte. Depois de comer a sopa, era o bacalhau e as batatas com azeite… (…) Tinha-se primeiro e segundo prato, mas o prato era sempre o mesmo, era um alguidar. Era um alguidar de esmalte. Depois, acabávamos de comer a sopa, lavávamos o alguidar e punha-se o bacalhau e as batatas. (…) A sopa era comida toda do mesmo alguidar, não havia pratos… (…) Até havia o hábito lá deles, dos antigos… eles tinham … era mesmo obrigatório, todos terem colheres de pau, as chamadas cocharras, colheres feitas pelos pescadores. Era uma colher autêntica, era o feitio de uma colher. (…). durante a viagem era sempre peixe. Peixe ao almoço, peixe ao jantar. Era o peixe que apanhávamos. (…)

Francisco Nunes continua a seu discurso entusiasticamente e descreve a armação do cerco: Armar o lance… tínhamos as redes dentro de uns barcos que chamava-se canoas de paus e redes. Erámos 20 homens. O meu tio Manel tinha a companha dele. (…) e o meu pai tinha a companha dele e as duas companhas trabalhavam em conjunto, faziam sempre o mesmo cerco, juntos. (…) Naquela altura, eram dezoito redes (…) e cada rede tinha á volta de … já não me lembro (…), tinha aí uns 6 ou 7 metros cada rede. Aquilo (as redes) era estendido na baixa-mar, com a maré vazia e uma das partes era enterrada no lodo (…), com os pés (…) descalços… com muitos arranhões e muitos golpes nos pés e os tornozelos ao enterrarmos a rede…

Depois, havia a parte de cima da rede que era para (…), na baixa-mar, era posta no lodo e depois ficava toda enrolada e a parte cá debaixo enterrada. A parte de cima ficava fora da lama. Depois, de 10 em 10 metros, levava uma vara. As varas eram para quando levantasse a rede na água cheia.

Por isso é que condenavam essa arte, foi sempre uma arte condenada. Era condenada, porque o peixe todo que vinha, fosse grande ou fosse miúdo, ficava lá. Evidentemente que morria muita criação, não é?

Francisco Nunes tem presente na sua memória toda a arte do cerco e, como tal, não se esquece de mencionar a partilha dos lucros, quando terminavam a companha. Ele explica, dizendo: Isto era assim, tirava-se o dinheiro para as despesas todas e depois o que sobrava é que era dividido por todos os quinhões… mas eu cá nunca cheguei a aprender aquilo (a divisão dos lucros), porque era por quinhões, meio quinhão e depois por partes… uma parte, duas partes, meia parte… eles é que sabiam… eles faziam bem as contas e não falhava nada… não falhava nada… Havia lá um que tinha uma cabeça! Fazia contas de cabeça.

Francisco Nunes é fadista amador e escreve alguns poemas dos fados que canta, sendo, na sua maioria, referentes ao rio, que tão bem conhece:

O meu destino é o mar
Dali não posso fugir
Ando lá por onde andar
É no mar que vou cair.

Adoro o mar a valer
Tenho-o no meu coração
É no mar que vem o peixe
Para eu ganhar meu pão.

Debaixo de um vendaval
E com a vela a rasgar
Olho no céu, ganho coragem
E continuo a lutar.

Com as vagas alterosas
A muitas milhas na praia
Olho o céu, rezo com fé
Pela Senhora da Atalaia.

Excerto de entrevista para o livro “Património Náutico-Piscatório do Montijo”
Data de Nascimento (20/09/1935) e Data Falecimento (20/06/2024)

Alexandre Cordeiro Couves

Alexandre Cordeiro Couves nasceu em 1949, no seio de uma família de pescadores, no Montijo. O informante dedicou-se à atividade piscatória desde muito cedo, mas só aos 14 anos, mais precisamente a 16 de maio de 1954, tirou a cédula marítima, ficando legalmente como profissional da arte.


Lembra-se de alguns momentos da sua infância: “Quando era pequenino andava lá, eu andava ao rabisco, naquela altura. O rabisco era atrás… os homens apanhavam… (o peixe), a campanha… iam todos à frente a apanhar o peixe e fica sempre peixe para trás… os nossos pais levavam-nos para lá para fazer menos despesa em casa. O que é que acontecia? Eles vendiam a nossa taquinha (colheita). A gente apanhava três a quatro quilos de peixe… ou quatro, ou cinco, era conforme e aquele peixe era vendido assim à porta. Trazia sete e quinhentos… naquela altura… dez escudos… Depois, aquele dinheiro era nosso.”

O informante continua a relatar, entusiasticamente, os procedimentos da arte do cerco, especificamente das redes: “Quando era essa altura (conserto das redes) ajuntava-se muita força de rede aqui no Montijo. Esta Avenida dos Pescadores, o largo todo dos pescadores, a rua dos pescadores lá para baixo, os muros onde estão as salinas e os viveiros de peixe, era tudo cheio de redes a secar, a rede tinha de estar seca, para depois receber a tinta. Chegámos a levar as redes aqui para o parque e já ia-se lavar as redes naquele empedrado que fizeram lá na ponte, que a gente chama a rampa, da ponte do vapor… no cais dos vapores que foi extinto…”

Maria Amélia Martins Mendes Cardoso Cordeiro

Maria Amélia Martins Mendes Cardoso Cordeiro, nasceu em Trás-os-Montes e veio para o Montijo aos 17 anos de idade, para trabalhar como doméstica, aos 19 anos casou com Jorge Couves e, a partir de então, tem-no acompanhado sempre nas lides piscatórias. A família começou a crescer e, mesmo assim, Maria Amélia continuou a atividade piscatória, criando as suas filhas enquanto trabalhava.
 Maria Amélia optou por ajudar o marido na pesca, porque, segundo ela diz: “para mim, a natureza é tudo, quem me tira a natureza tira-me tudo e a trabalhar ao ar livre não tem explicação… tudo o que é ao ar livre fascina-me, pronto!”


A aprendizagem de Maria Amélia Cordeiro realizou-se in loco, observando os outros pescadores, como refere: “O que via fazer, faziam também: eu via eles a trabalharem e o que precisavam que eu fizesse, eu fazia. (ainda menciona que não teve dificuldade em se integrar na arte do cerco) Fui para o mar com o meu marido. Naquela altura, que era no tempo dos cercos, havia muitos homens, eram seis, sete homens… No tempo dos cercos, muitas vezes, fazia eu o comer, enquanto eles andavam lá dentro da lama, a trabalhar, eu ficava lá na embarcação, muitas vezes a fazer o comer e depois ia para os cercos com eles. (Essa alimentação baseava-se essencialmente em caldeirada, como menciona) Era a caldeirada… eles apanhavam lá o peixe, assim que saltassem (para o lodo), apanhavam logo o primeiro peixe e vinham trazer à embarcação, para a pessoa que lá estivesse a fazer o comer, eu arranjava o peixe, fazia o comer e, quando eles acabassem o trabalho, estava o comer pronto para comer”.

A informante fala das dificuldades que teve para tirar a cédula marítima, apesar de estar nesta atividade há muitos anos: Agora, a mim não ma davam (cédula marítima) porque, como não tinha a 4ª classe… (só era permitido tirar a cédula aqueles que tivessem a 4ª classe feita). Para tirar a cédula marítima, Maria Amélia Cordeiro diz que: “Tive de andar no curso à noite (realizado nas instalações da SCUPA). Tudo coisas que eles vão buscar por estar a lidar por nomes de embarcações (…) e disto e daquele outro… bombordo e estibordo… eles vão buscar tudo isso e nós trabalhamos com a teoria.


José António Aranha

José António Aranha nasceu no Montijo, a 3 de Fevereiro de 1934. Devido ás carências económicas, foi trabalhar com o pai, António M. Neto Aranha, na atividade piscatória. Assim, e devido ao falecimento de seu irmão, que morreu afogado nas águas do Tejo, viu-se forçado a abandonar a escola aos 11 anos de idade. Mais tarde, aos 14 anos, tirou a cédula de pescador, passando o resto da sua vida ligado ao rio.

“Comecei na arte da pesca pequenino. O meu pai começou a levar-me lá por graça, mas depois agarrei-me àquilo. Tinha 18 ou 19 anos quando comecei a trabalhar a sério, a ganhar como os homens. Depois fui á tropa.”

A área piscatória do Montijo era restrita, nunca se prolongava para além do rio, como menciona: “Nós ficávamos aqui dentro do rio, fazia-se aqui o rio, íamos á Ponte Vasco da Gama até Vila Franca. Tínhamos que ficar aqueles dias todos, porque não havia motores como agora e á vela não dava para andarmos para cá e para lá.”

José António Aranha dedicou a maior parte da sua vida de pescador á arte do cerco ou tapa-esteiros. Assim sendo, descreve como era realizado esse tipo de arte: “Aquilo era umas companhas de 10, 12 homens, mas havia outras que tinham 7 e outras com 14, isso dependia.. Ficávamos dentro de um barco… Comia-se ali… o comer era num alguidar de alumínio ou de barro e metia-se tudo ali para dentro e os homens ficavam ali á roda… não havia pratos, nã havia colheres, nã havia nada… nã havia copos, o vinho era da garrafa, bebíamos pela garrafa,era assim”

A alimentação da companha baseava-se numa dieta de peixe, consoante a pescaria, como explica José António Aranha “Ao primeiro dia era o bacalhau… Levávamos o bacalhau da Cooperativa (refere-se á SCUPA). Isto era uma Cooperativa e aviávamos aqui os alimentos para o mar: eram batatas, bacalhau, azeite, tudo…”  “Cada qual (pescador) tinha uma caderneta e ficava ali apontado o que levou. Quando vinha do regresso da quinzena que trabalhou é que tinha que pagar. Se ganhou dinheiro, pagava, se não ganhou, ficava para depois ir amortizando” 

José António Aranha lembra as festas populares, quando era mais novo, e descreve-as com algum pesar e nostalgia: “Era diferente… As festas começaram a fazer-se ali (indica a zona ribeirinha). Eram uns terrenos de areia, onde punham umas rosas… flores de papel… que as mulheres faziam e depois metiam para ali um tipo de concertina a tocar. Os pescadores dedicam a festa ao S. Pedro, o padroeiro dos pescadores. Juntávamo-nos aí… a festa era sempre feita nesta casa (refere-se á SCUPA), eram dois dias: o S. Pedro e o S. Marçal. Depois, faziam um baile aqui á roda, vinham os pescadores e as pescadeiras e andava tudo aqui a dançar.”

José António Aranha

Data Nascimento: 03/02/1934
Data Falecimento: 19/07/2019

“Excerto de Entrevista para o livro “Património Náutico-Piscatório do Montijo”

Nuno Canta

Presidente Câmara Municipal do Montijo

A centenária Sociedade Cooperativa União Piscatória Aldegalense (SCUPA) é uma instituição altamente prestigiada na cidade, cujo contributo cultural e social para a classe piscatória, num espírito de serviço aos montijenses, nos cumpre agradecer e louvar.

Tal como fizeram os corpos dirigentes do passado, os atuais dirigentes da Sociedade Cooperativa União Piscatória Aldegalense, mantêm fidelidade à história da associação e continuam a transportar as aspirações dos pescadores montijenses.

Votos de uma vida longa aos valores humanistas presentes na Sociedade Cooperativa União Piscatória Aldegalense e honra ao movimento associativo da classe piscatória na cidade de Montijo.

Fernando Caria

Presidente da União de Freguesias de Montijo e Afonsoeiro

A história da SCUPA é longa. Não será certamente em tão poucas linhas que serei capaz de contar mais de 100 anos de existência, mas certamente é possível falar da extrema relevância que a SCUPA sempre assumiu para as gentes do Montijo.

Uma associação centenária, nascida a 2 de março de 1913, que começou por ser um porto de abrigo em tempos de “tempestade”, quando os tempos de faina eram menos abundantes e generosos para os pescadores. Funcionando como uma cooperativa de consumo e, já nessa altura, um exemplo de solidariedade e responsabilidade social, cada pescador pagava o que podia para o benefício de todos.

Os anos foram passando. O caminho do desenvolvimento do Montijo levou um rumo distinto. A atividade piscatória, apesar de ainda hoje se manter, tornou-se cada vez mais residual e o papel da SCUPA enquanto fonte de previdência dos pescadores deixou de fazer tanto sentido.

Como não poderia deixar de ser, uma associação formada por pessoas habituadas a ter a resiliência e a capacidade de reinvenção no seu ADN, conseguiu direcionar o foco da sua ação para novas atividades, tendo-se constituído como um dos pilares da cultura no Montijo.

Exemplo disso é a participação ativa e essencial nas Festas Populares de São Pedro, nomeadamente em três momentos de maior importância na programação das festas: a procissão fluvial, a procissão noturna e o almoço da classe piscatória. Três momentos emblemáticos e representativos das tradições e da verdadeira essência das nossas Festas de São Pedro.

Ao longo de mais de um século, a SCUPA tem sabido assumir o seu papel de guardiã das memórias, das histórias e das tradições ligadas à classe piscatória e ao Bairro dos Pescadores. Aliás, é neste bairro que tem a sua sede e o Museu do Pescador, este último instalado em edifício da Junta da União das Freguesias de Montijo e Afonsoeiro, que está assim ao serviço da cultura na nossa terra.

Basta uma visita atenta a este espaço museológico e as centenas de objetos e artefatos que compõem a sua coleção para sentirmos o papel preponderante que os pescadores e a arte da pesca tiveram e têm na construção daquilo que foi Aldegalega e que é hoje o Montijo.

São memórias de tempos áureos da classe piscatória, tempos de labuta diária e dura no Rio Tejo, o rio que está ali mesmo ao lado e que continua a ser vivido e celebrado com especial importância por quem nasceu, cresceu e sempre viveu no Bairro dos Pescadores.

Todas as associações, sem exceção, da nossa freguesia têm a sua história e importância. Todas são fundamentais para a dinamização cultural da nossa terra. A SCUPA assume o papel adicional de ser essencial na preservação da identidade do Montijo. Termino, por isso, deixando um profundo reconhecimento e agradecimento a todos os antigos e atuais dirigentes da SCUPA, aos seus associados e amigos por todo o trabalho que tem desenvolvido em prol do Montijo e por continuarem a fazer da SCUPA uma casa de cultura e de memória. 

Rui Rosado

Presidente da Marinha do Tejo

A SCUPA, associação centenária do Montijo, continua a crescer, a evoluir e a manter a sua importância na preservação da tradição piscatória, mas também da cultura e identidade do Montijo, do Tejo e das suas comunidades ribeirinhas.

Importa recordar e homenagear todos aqueles que ao longo de várias gerações fizeram desta associação um espaço de solidariedade, fraternidade e de tradição. Com a sabedoria de saber mudar, mantendo a comunidade viva na relação com o rio, congratulamos os seus corpos diretivos e associados que preservam a vontade de manter vivas as tradições do Tejo.

A SCUPA vive o Tejo, aproxima os mais jovens do saber navegar, do sentir o território fluvial e a via da água como parte de si.

As embarcações típicas, os catraios, as canoas, os botes e os varinos continuam vivos na memória, mas também no presente, para que se continue a fazer história e a preservar o património.

A Marinha do Tejo estará sempre ao lado SCUPA na promoção das embarcações típicas do Tejo e na aproximação das comunidades ao saber navegar, para que juntos possamos valorizar a nossa identidade e tradição marítimo-fluvial local, regional e nacional.

Viva o Tejo, Viva o Montijo e Viva a SCUPA.

Bem hajam.

“Marinha do Tejo”

Jorge Couves

Jorge Couves, nasceu no Montijo, a 10 de dezembro de 1946, no seio de uma família de pescadores. Ainda estava na escola quando começou a acompanhar o pai nas lides piscatórias e, desde então, toda a sua vivência laboral se desenvolveu em torno dessa atividade do arrasto: É uma arte especial, é uma arte que é arrastada pelo próprio barco, é uma rede que vai a arrastar no fundo, no leito do rio e o barco é que faz… um saco. A rede vai a trabalhar no fundo, o peixe entra e fica no saco (…) Toda a porcaria que tiver no fundo do rio (é arrastada pela rede) … porque estes barcos que vieram, os catamarãs, destruíram o leito do rio todo.

Antigamente, atacaram o arrasto, porque o arrasto… só é praticado por pessoas… como é o meu caso, que têm licença especial. Esta arte é muita antiga, porque as pessoas que agora começam a trabalhar na pesca (segundo o informante, não lhes é concedida a licença para praticar a arte do arrasto). É uma arte que está a acabar, é para acabar. Eles agarram-se ao tal problema que o arrasto destrói e vai arrastando o… leito do rio. Destrói mais num dia um catamarã… vou lhe dar um exemplo: o catamarã, num dia quando a maré está vazia, está a água caída só no canal e destrói mais numa viagem do que destrói o arrasto. O catamarã revolve o leito todo quando ele vai a passar, vai revolvendo tudo. Portanto, quando nós… quando os catamarãs começaram a aparecer aí, nós começamos a apanhar muito coisa antiga, que estava encerrada no fundo do rio. (começaram a aparecer) potes de antigamente de pôr o peixe, coisas em barro, cheguei a apanhar inteirinhos, mas conforme pegávamos (desfaziam-se).


As outras artes é a arte de largar as redes, já não é o barco a puxar, largam-se para dentro da água num comprimento de 200, 300 metros; larga-se a rede em sítios próprios e fica ali umas horas ou até de um dia para o outro… se forem águas curtas, pode-se deixar de um dia para o outro. Tem que ficar sinalizada, fica lá e no outro dia vamos lá, recolhemos o peixe para dentro (da embarcação).


Jorge Couves afirma que, quando foi proibida a arte do cerco, teve que optar por outras artes, enquanto que a maioria dos pescadores abandonaram as lides piscatórias: Acabou o cerco e eu pensei em governar-me sempre sozinho, nunca pensei em sair da pesca… 80% dos pescadores aqui no Montijo saiu quando acabou o cerco, saiu tudo, foi tudo embora (…) como não tinha condições para a pesca, uns emigraram, outros foram para a Transtejo, outros foram para os batelões. 80% foi embora, ficou aí poucos.”


O informante lembra-se da devoção que os pescadores tinham pala Nª Srª da Atalaia e a homenagem que lhe prestavam na altura das festas, como refere: “Era como a festa da Atalaia, não havia nenhum tempo, e iam a pé para a Atalaia, mas hoje já não (…) Mas, quando acontecia alguma coisa de mal no mar e que as pessoas se salvavam, iam logo à Nª Sra. Da Atalaia… quando alguém se salvava.

Manuel Aranha

Manuel Jorge Aranha nasceu no Montijo, no ano de 1933. Filho de pescador, acompanhou o pai na arte da pesca, desde os 8 anos de idade, com 13 anos, ainda trabalhou numa fábrica de cortiça, mas optou pelas lides piscatórias. 


O informante relata como é que iniciou a atividade piscatória: O meu pai era pescador, o meu irmão também é pescador. “A gente, naquela altura, era assim… eu também trabalhei numa fábrica de cortiça com os meus 13 anos, com ideias de ficar em terra e não ir para o mar, mas depois, quando chegou ali aos 15 anos, lá em casa, à mesa era assim: (…) queres ir para o mar ou queres ir para a terra? A pergunta foi esta. Se queres ir para o mar, então vamos ao Barreiro tirar a cédula marítima.”

Continua o relato dizendo:” Desde muito novinho, já nas férias da escola, aqui não havia vadiagem… Naquela altura, ficávamos lá (na pesca) 12, 13 dias e depois é que vínhamos a terra. Vinha as férias a gente saia e ficava os 13 dias e 12 e lá iam os miúdos lá dentro (da embarcação). Cada canoa levava 3, 4 (crianças), não havia cá nada para ninguém… a gente, depois, lá fazia um rabiscozinho (andar ao rabisco, ou seja, apanhar o peixe que os pescadores deixavam atrás). Ajudava-se os homens a fazer qualquer coisa e tal… pronto, a aprender a lida. Eles mandavam logo (fazer coisas) “puxa daqui, puxa dali”, não havia descanso para ninguém. (…) Eles diziam: “rapazes, ta na hora de descansar as batatas” e depois acabava-se de armar o cerco à noite… e a gente deixava as batatas descascadas dentro de um balde com água e quando se acabava de armar o cerco, já lá estavam as batatinhas prontas para cortar e ir para a panela.


Manuel Aranha destaca que a vida da pesca era difícil e relata o acidente que sofreu juntamente com outros três pescadores: “Tivemos um naufrágio e o barco foi ao fundo, ficaram lá dois colegas… morreram nesse dia. Éramos quatro, na altura era a pesca da malha, nesse dia, ficaram lá dois. Foi de inverno, no dia 29 de Novembro de 1995, dos dias mais pequeninos do ano. O barco foi ao fundo… houve uma desligação das tábuas e começou a meter água e não houve hipótese e o barco ficou…, o barco ficou direito… mas o barco tinha um guindaste e nós agarramos o guindaste até poder. (Ficaram ali) até que viesse alguém, mas quem é que sabia que a gente estava ali? Passou lá uns barcos, mas não viu. Era de dia, mas não havia sol e teve a chover todo o dia, tava assim coisa (com uma neblina) … A gente teve ali a sofrer aquilo tudo… Antão, aquilo aconteceu, era dez e meia da manhã e eu fui para Santa Iria, era dez da noite. Foi um dia que representou sei lá quantos… ali, todo nu e a chover-me em cima, naqueles dias mais pequeninos de Inverno… Um dos colegas já estava roxo… ficaram agarrados ali no guindaste. Eu ainda tive para me largar, percebe? Punha o colete e ia parar a ponte, mas sei lá se ia ou se não ia? Era o único que era capaz de fazer isso… Havia só mais um velho, os outros dois eram mais novos. Havia essa hipótese, mas também havia outra que era para onde eu fui e (pensou) a água baixando, eu passo para o outro lado, e foi que fiz. O Zé também passou, o António não foi e foi o que foi… pronto! Já viu o que eu tive que andar, do meio do Rio para Santa Iria?… Nadar e depois andar pela lama, pela lezíria e aquilo tudo? Já viu o que é atravessar do meio do rio até Santa Iria? O que uma pessoa tem que passar! Aquilo não é uma estrada, não é uma rua… e os buracos que aquilo tem por aquelas lezírias e morraçais!… Fui sozinho, era dez e meia da noite… atravessei e encontrei uma fábrica, tava lá os seguranças, comecei a gritar e vieram logo e depois é que souberam que a gente estava naquela situação. Ninguém sabia, tava tudo a querer saber, mas ninguém sabia. (quanto aos outros pescadores) um ficou lá e esse salvou-se, depois foi lá a polícia marítima buscá-lo e depois foram ter comigo lá a Santa Iria. Assim que dei o recado, eles chamaram o 112 e foi a notícia para a televisão e a polícia foi logo lá. Foi lá buscar o outro que estava lá. Depois mais tarde, morreu com uma doença no intestino, mas pronto! Foi-se embora os colegas… Era o Zé Fragateiro, era o Joaquim da Silva, que era meu parente também, era o António Fragateiro, que era o parente do Zé, e era eu. Ficou lá um e aos outros eu disse que, se quisessem, ficassem lá. O Zé foi o primeiro a ir embora se já estava numa situação de delírio… já estava a passar-se… É das coisas piores que pode acontecer, o de uma pessoa estar… pronto, estarmos arrumados. Se aquilo era mais um bocadinho atrás ou a frente estávamos arrumados e ninguém se salvava naquela altura… não sei (…) mas o pior era o frio. Já viu o que era? … e a chover todo o dia.”


Manuel Aranha fala ainda das festas em homenagens a S. Pedro, padroeiro dos pescadores. Lembrando de quando era mais novo, acrescenta: “Foi depois de ter tirado a cédula marítima, para aí com os meus 17 anos, 18. Fui levar o S. Pedro às costas. Porque era tradição. Geralmente, ia sempre com a procissão e, naquele ano, nessa altura era os mais novos (que pegavam no andor). Depois a procissão era a tarde, e o Padre, depois dava a missa. Depois de arrear o São Pedro (na igreja) … os macacões mais velhos diziam assim: “vou ali mijar e já venho”. Vinham mijar…, mas não era, vinham era para aqui (SCUPA)… e os mais novos ficavam lá entalados… está a ver a conversa? Mas o andor pesava muito, era um sacrifício do caneco. Não sei se já está mudado, mas deviam mudar aquilo; é cimento ou o que é aquilo?… e eu, que tenho problemas de coluna, disse: “deixa estar que eu lhe pego!” Nunca mais peguei.”


O informante fala ainda de outro momento da festa, o da arrematação das bandeiras na SCUPA: “É para cobrar algum dinheiro para depois fazer a festa. As bandeiras são daqui, deste património (SCUPA). Pessoas que fazem as bandeiras e elas são arrematadas e regressam no ano seguinte. Paga aquela avença e depois entrega a bandeira e o dinheiro, que é para fazer o tal almoço do dia 30. Não quer dizer que o dinheiro vá chegar, mas é… (uma ajuda), em todas as coletividades é assim. (As bandeiras) são as pessoas que oferecem, eram pessoas que ofereciam e continuam…”


Manuel Aranha, durante o seu depoimento, mostrou alguma tristeza por se lembrar das lides piscatórias e, principalmente, ao recordar-se das dificuldades vividas. Foi com a emoção de quem temeu pela própria vida e de quem perdeu os seus camaradas que relatou o horror do episódio trágico-marítimo que assolou a comunidade montijense.


Data de Nascimento:18/11/1934
Data de Falecimento: 16/09/2021