Testemunhos

João Feijão

1º de Maio, banco de jardim, no separador central da Avenida dos Pescadores, junto à SCUPA. Em frente ao Nº110, precisamente em frente à casa onde nasceu, João Feijão, 88 anos:

“Era aquela janela do lado direito. Só aquela. A outra era p’ró 1º andar… agora é tudo da mesma”.

“Nasci num meio de Pescadores, com quatro anos comecei a acompanhar. Nunca pude ir à escola. Os outros iam para a escola e eu ia para o Mar. Esta escola aqui mesmo, que é agora o Museu.”

“Uma vida muito dura… ainda bem que hoje não é assim.” O seu olhar transmite mais do que em qualquer outra vez, o porquê de ser assim, quando diz: “…os lençóis, as mantas… tá a perceber… eram as redes.”

“O Abílio era meu irmão. Morava ali mesmo ao lado da Casa. Tinha três irmãs e dois irmãos. O Abílio era o Sócio Nº1.”

“Eu servi a Casa mais de 40 anos, com vários Presidentes. O Tenreiro era quem mandava no Mar na altura. Não gostava da gente. Dizia que a gente matava o peixe miúdo. Mas com a gente houve sempre peixe no Mar… e hoje … onde é que está as enguias? Acabou com a arte do cerco e a gente ficou parados, à fome. Fome mesmo. Era a arte que a gente sabia trabalhar. Certo dia a gente convidou e trouxe aqui o Tenreiro. Ele perguntou quem é que o recebia, a gente disse que era a Câmara e a Câmara recebeu… depois veio aqui. O homem subiu à Casa, e nós tínhamos posto uma fotografia dele no cimo da escada. O homem quando encarou com aquilo até chorou! Ficou a ver a gente de outra maneira. Até deixou um cheque de cem contos. E mais tarde ajudou outra vez, só que tivemos de levantar o cheque na Junta, porque deu-se o 25 de Abril e ninguém pagava o cheque.”

“Eu andei ainda um tempo lá fora da barra, com o Marcelino. Na Barca que é agora da Câmara, a Lubélia Maria. Lá fora era duro, muito duro, mas dava mais qualquer coisa.”

“Muita gente ajudou a Casa. O Lupi recebia sempre um convite para o Almoço da Casa (Dia S. Marçal). Íamos lá requisitar vinho ou outras coisas, e era logo tudo “sim senhor”. Era a D. Leopoldina que tratava, uma grande senhora. O Lupi chegou a pôr aí à porta uma carroça com uns tonéis para a malta beber o que queria. Agora faleceu a filha dele, a Rosa. A Casa enviou as condolências, fez muito bem. Eram pessoas sempre convidadas, pois ajudavam muito a Casa, e vinham sempre. Ainda até à pouco se enviava um convite à viúva do Beatriz. Uma vez tínhamos de partir uma parede para fazer ali um salão mais amplo, e convidamos o Beatriz e o Lupi. Não foi peixe, foi um ensopado de borrego. Fiz eu, que felizmente sei cozinhar bem até hoje, só têm de me ajudar com a loiça. Ninguém queria pedir uma ajuda, a malta teve vergonha. Até o  Presidente disse: “epá eu não sou capaz”. Eu disse, deixem estar que eu falo com o homem. Chamei o Beatriz e disse que precisava falar com ele mas… ali, naquela sala (actual secretaria). Sr. Beatriz, queria falar consigo… Expliquei-lhe que tínhamos de fazer aquela obra, mas que aquilo importava muito dinheiro, e que precisávamos de ajuda… Ele perguntou: “mas isso importa mais ou menos quanto?” Cento e cinquenta contos. Ele chamou o Lupi e disse:  – Os Homens têm de fazer aqui uma obra, e precisam de ajuda. – Pois muito bem, e a gente ajuda. Deram setenta e cinco contos cada um. “

“Esta Direção, uma vez pediu-me para ir lá levar um convite, porque não se sentiam à vontade. Eu disse logo: vamos embora. Fui lá com eles na carrinha da Casa, e assim é que tem de ser!”

“Antigamente houve períodos muito maus. A segunda guerra. Era fome, fome mesmo. Uma vez fomos pedir ajuda ao Santos Fernandes. Era Almirante. Era dono aqui da Quinta do Páteo d’Água, que mais tarde doou à Camara. Fomos lá falar com ele. Ajudou muito a malta. Passou a haver todos os dias, naquele período, sopa feita pelos nossos velhos ali na Casa. A malta ia ali ao beco. Aquilo dava para o quintal, onde nas casas do forno, lá ao fundo era feita a sopa para distribuir por todos. Tudo por conta do Santos Fernandes.”

“A SCUPA foi para muitos, a segunda casa. Ainda hoje tenho pena de me custar subir lá acima. Por causa das escadas. As pernas os braços. A cabeça, essa está bem. Ainda faço a minha comida, gosto muito de cozinhar. Eu é que compro tudo, a minha filha só vai buscar porque eu não consigo carregar. A minha filha é a melhor coisa… se não fosse ela, ia ser muito difícil para mim.”

João Luís Pereira Feijão
Data Nascimento: 23/03/1931
Data Falecimento: 13/09/2021

Entrevista para o Jornal da Scupa

Francisco Nunes

Francisco Gaspar Nunes nasceu no Montijo, a 20 de setembro de 1935. Quando tinha 2 anos, a mãe faleceu. Passados três anos do falecimento da mãe, o pai contraiu matrimonio com uma senhora do bairro, formando uma nova família.

Francisco Nunes frequentou a escola até aos 12 anos de idade, tendo feito a 4ª classe, após a qual, foi para a pesca com o pai e outros familiares. Permaneceu nesta atividade até 1962, ano em que integrou os quadros da Sociedade de Transportes Marítimos, como marinheiro de segunda. Após 4 anos em exercício, foi promovido a marinheiro de primeira e, mais tarde, em 1987, foi nomeado mestre de tráfego local, reformando-se em 1999.

Francisco Nunes menciona que a atividade piscatória é sazonal e diz que: naquele tempo, a maioria dos pescadores… era assim: trabalhávamos de Verão, de março a outubro, nos cercos, e, durante o Inverno… aí, vá lá, uns 20% que andavam na pesca. Francisco Nunes foi para o rio aprender as artes da pesca com o pai, acompanhou o pai desde cedo, como relata: “Quando fiz o exame da 4ª classe, o meu pai estava no mar e faltava 5 dias para vir para terra, já estava lá há 10 dias.

Francisco Nunes descreve como decorria a arte do cerco, especificando a vertente alimentícia da companha: No primeiro dia, nós levávamos daqui da sede (SCUPA) bacalhau. Era logo ao almoço bacalhau… Ao almoço era assim, faziam sopa de bacalhau… O bacalhau era desfiado, como se fosse bacalhau de caldeirada, depois, fazia-se a sopa… lá se punha mais água e fazia-se a sopa. Depois, punha-se as batatas por cima da sopa para fazer caldo (…) Depois, tirava-se o bacalhau que estava cozido à parte. Depois de comer a sopa, era o bacalhau e as batatas com azeite… (…) Tinha-se primeiro e segundo prato, mas o prato era sempre o mesmo, era um alguidar. Era um alguidar de esmalte. Depois, acabávamos de comer a sopa, lavávamos o alguidar e punha-se o bacalhau e as batatas. (…) A sopa era comida toda do mesmo alguidar, não havia pratos… (…) Até havia o hábito lá deles, dos antigos… eles tinham … era mesmo obrigatório, todos terem colheres de pau, as chamadas cocharras, colheres feitas pelos pescadores. Era uma colher autêntica, era o feitio de uma colher. (…). durante a viagem era sempre peixe. Peixe ao almoço, peixe ao jantar. Era o peixe que apanhávamos. (…)

Francisco Nunes continua a seu discurso entusiasticamente e descreve a armação do cerco: Armar o lance… tínhamos as redes dentro de uns barcos que chamava-se canoas de paus e redes. Erámos 20 homens. O meu tio Manel tinha a companha dele. (…) e o meu pai tinha a companha dele e as duas companhas trabalhavam em conjunto, faziam sempre o mesmo cerco, juntos. (…) Naquela altura, eram dezoito redes (…) e cada rede tinha á volta de … já não me lembro (…), tinha aí uns 6 ou 7 metros cada rede. Aquilo (as redes) era estendido na baixa-mar, com a maré vazia e uma das partes era enterrada no lodo (…), com os pés (…) descalços… com muitos arranhões e muitos golpes nos pés e os tornozelos ao enterrarmos a rede…

Depois, havia a parte de cima da rede que era para (…), na baixa-mar, era posta no lodo e depois ficava toda enrolada e a parte cá debaixo enterrada. A parte de cima ficava fora da lama. Depois, de 10 em 10 metros, levava uma vara. As varas eram para quando levantasse a rede na água cheia.

Por isso é que condenavam essa arte, foi sempre uma arte condenada. Era condenada, porque o peixe todo que vinha, fosse grande ou fosse miúdo, ficava lá. Evidentemente que morria muita criação, não é?

Francisco Nunes tem presente na sua memória toda a arte do cerco e, como tal, não se esquece de mencionar a partilha dos lucros, quando terminavam a companha. Ele explica, dizendo: Isto era assim, tirava-se o dinheiro para as despesas todas e depois o que sobrava é que era dividido por todos os quinhões… mas eu cá nunca cheguei a aprender aquilo (a divisão dos lucros), porque era por quinhões, meio quinhão e depois por partes… uma parte, duas partes, meia parte… eles é que sabiam… eles faziam bem as contas e não falhava nada… não falhava nada… Havia lá um que tinha uma cabeça! Fazia contas de cabeça.

Francisco Nunes é fadista amador e escreve alguns poemas dos fados que canta, sendo, na sua maioria, referentes ao rio, que tão bem conhece:

O meu destino é o mar
Dali não posso fugir
Ando lá por onde andar
É no mar que vou cair.

Adoro o mar a valer
Tenho-o no meu coração
É no mar que vem o peixe
Para eu ganhar meu pão.

Debaixo de um vendaval
E com a vela a rasgar
Olho no céu, ganho coragem
E continuo a lutar.

Com as vagas alterosas
A muitas milhas na praia
Olho o céu, rezo com fé
Pela Senhora da Atalaia.

Excerto de entrevista para o livro “Património Náutico-Piscatório do Montijo”
Data de Nascimento (20/09/1935) e Data Falecimento (20/06/2024)

Alexandre Cordeiro Couves

Alexandre Cordeiro Couves nasceu em 1949, no seio de uma família de pescadores, no Montijo. O informante dedicou-se à atividade piscatória desde muito cedo, mas só aos 14 anos, mais precisamente a 16 de maio de 1954, tirou a cédula marítima, ficando legalmente como profissional da arte.


Lembra-se de alguns momentos da sua infância: “Quando era pequenino andava lá, eu andava ao rabisco, naquela altura. O rabisco era atrás… os homens apanhavam… (o peixe), a campanha… iam todos à frente a apanhar o peixe e fica sempre peixe para trás… os nossos pais levavam-nos para lá para fazer menos despesa em casa. O que é que acontecia? Eles vendiam a nossa taquinha (colheita). A gente apanhava três a quatro quilos de peixe… ou quatro, ou cinco, era conforme e aquele peixe era vendido assim à porta. Trazia sete e quinhentos… naquela altura… dez escudos… Depois, aquele dinheiro era nosso.”

O informante continua a relatar, entusiasticamente, os procedimentos da arte do cerco, especificamente das redes: “Quando era essa altura (conserto das redes) ajuntava-se muita força de rede aqui no Montijo. Esta Avenida dos Pescadores, o largo todo dos pescadores, a rua dos pescadores lá para baixo, os muros onde estão as salinas e os viveiros de peixe, era tudo cheio de redes a secar, a rede tinha de estar seca, para depois receber a tinta. Chegámos a levar as redes aqui para o parque e já ia-se lavar as redes naquele empedrado que fizeram lá na ponte, que a gente chama a rampa, da ponte do vapor… no cais dos vapores que foi extinto…”

Maria Amélia Martins Mendes Cardoso Cordeiro

Maria Amélia Martins Mendes Cardoso Cordeiro, nasceu em Trás-os-Montes e veio para o Montijo aos 17 anos de idade, para trabalhar como doméstica, aos 19 anos casou com Jorge Couves e, a partir de então, tem-no acompanhado sempre nas lides piscatórias. A família começou a crescer e, mesmo assim, Maria Amélia continuou a atividade piscatória, criando as suas filhas enquanto trabalhava.
 Maria Amélia optou por ajudar o marido na pesca, porque, segundo ela diz: “para mim, a natureza é tudo, quem me tira a natureza tira-me tudo e a trabalhar ao ar livre não tem explicação… tudo o que é ao ar livre fascina-me, pronto!”


A aprendizagem de Maria Amélia Cordeiro realizou-se in loco, observando os outros pescadores, como refere: “O que via fazer, faziam também: eu via eles a trabalharem e o que precisavam que eu fizesse, eu fazia. (ainda menciona que não teve dificuldade em se integrar na arte do cerco) Fui para o mar com o meu marido. Naquela altura, que era no tempo dos cercos, havia muitos homens, eram seis, sete homens… No tempo dos cercos, muitas vezes, fazia eu o comer, enquanto eles andavam lá dentro da lama, a trabalhar, eu ficava lá na embarcação, muitas vezes a fazer o comer e depois ia para os cercos com eles. (Essa alimentação baseava-se essencialmente em caldeirada, como menciona) Era a caldeirada… eles apanhavam lá o peixe, assim que saltassem (para o lodo), apanhavam logo o primeiro peixe e vinham trazer à embarcação, para a pessoa que lá estivesse a fazer o comer, eu arranjava o peixe, fazia o comer e, quando eles acabassem o trabalho, estava o comer pronto para comer”.

A informante fala das dificuldades que teve para tirar a cédula marítima, apesar de estar nesta atividade há muitos anos: Agora, a mim não ma davam (cédula marítima) porque, como não tinha a 4ª classe… (só era permitido tirar a cédula aqueles que tivessem a 4ª classe feita). Para tirar a cédula marítima, Maria Amélia Cordeiro diz que: “Tive de andar no curso à noite (realizado nas instalações da SCUPA). Tudo coisas que eles vão buscar por estar a lidar por nomes de embarcações (…) e disto e daquele outro… bombordo e estibordo… eles vão buscar tudo isso e nós trabalhamos com a teoria.


José António Aranha

José António Aranha nasceu no Montijo, a 3 de Fevereiro de 1934. Devido ás carências económicas, foi trabalhar com o pai, António M. Neto Aranha, na atividade piscatória. Assim, e devido ao falecimento de seu irmão, que morreu afogado nas águas do Tejo, viu-se forçado a abandonar a escola aos 11 anos de idade. Mais tarde, aos 14 anos, tirou a cédula de pescador, passando o resto da sua vida ligado ao rio.

“Comecei na arte da pesca pequenino. O meu pai começou a levar-me lá por graça, mas depois agarrei-me àquilo. Tinha 18 ou 19 anos quando comecei a trabalhar a sério, a ganhar como os homens. Depois fui á tropa.”

A área piscatória do Montijo era restrita, nunca se prolongava para além do rio, como menciona: “Nós ficávamos aqui dentro do rio, fazia-se aqui o rio, íamos á Ponte Vasco da Gama até Vila Franca. Tínhamos que ficar aqueles dias todos, porque não havia motores como agora e á vela não dava para andarmos para cá e para lá.”

José António Aranha dedicou a maior parte da sua vida de pescador á arte do cerco ou tapa-esteiros. Assim sendo, descreve como era realizado esse tipo de arte: “Aquilo era umas companhas de 10, 12 homens, mas havia outras que tinham 7 e outras com 14, isso dependia.. Ficávamos dentro de um barco… Comia-se ali… o comer era num alguidar de alumínio ou de barro e metia-se tudo ali para dentro e os homens ficavam ali á roda… não havia pratos, nã havia colheres, nã havia nada… nã havia copos, o vinho era da garrafa, bebíamos pela garrafa,era assim”

A alimentação da companha baseava-se numa dieta de peixe, consoante a pescaria, como explica José António Aranha “Ao primeiro dia era o bacalhau… Levávamos o bacalhau da Cooperativa (refere-se á SCUPA). Isto era uma Cooperativa e aviávamos aqui os alimentos para o mar: eram batatas, bacalhau, azeite, tudo…”  “Cada qual (pescador) tinha uma caderneta e ficava ali apontado o que levou. Quando vinha do regresso da quinzena que trabalhou é que tinha que pagar. Se ganhou dinheiro, pagava, se não ganhou, ficava para depois ir amortizando” 

José António Aranha lembra as festas populares, quando era mais novo, e descreve-as com algum pesar e nostalgia: “Era diferente… As festas começaram a fazer-se ali (indica a zona ribeirinha). Eram uns terrenos de areia, onde punham umas rosas… flores de papel… que as mulheres faziam e depois metiam para ali um tipo de concertina a tocar. Os pescadores dedicam a festa ao S. Pedro, o padroeiro dos pescadores. Juntávamo-nos aí… a festa era sempre feita nesta casa (refere-se á SCUPA), eram dois dias: o S. Pedro e o S. Marçal. Depois, faziam um baile aqui á roda, vinham os pescadores e as pescadeiras e andava tudo aqui a dançar.”

José António Aranha

Data Nascimento: 03/02/1934
Data Falecimento: 19/07/2019

“Excerto de Entrevista para o livro “Património Náutico-Piscatório do Montijo”

Nuno Canta

Presidente Câmara Municipal do Montijo

A centenária Sociedade Cooperativa União Piscatória Aldegalense (SCUPA) é uma instituição altamente prestigiada na cidade, cujo contributo cultural e social para a classe piscatória, num espírito de serviço aos montijenses, nos cumpre agradecer e louvar.

Tal como fizeram os corpos dirigentes do passado, os atuais dirigentes da Sociedade Cooperativa União Piscatória Aldegalense, mantêm fidelidade à história da associação e continuam a transportar as aspirações dos pescadores montijenses.

Votos de uma vida longa aos valores humanistas presentes na Sociedade Cooperativa União Piscatória Aldegalense e honra ao movimento associativo da classe piscatória na cidade de Montijo.

Fernando Caria

Presidente da União de Freguesias de Montijo e Afonsoeiro

A história da SCUPA é longa. Não será certamente em tão poucas linhas que serei capaz de contar mais de 100 anos de existência, mas certamente é possível falar da extrema relevância que a SCUPA sempre assumiu para as gentes do Montijo.

Uma associação centenária, nascida a 2 de março de 1913, que começou por ser um porto de abrigo em tempos de “tempestade”, quando os tempos de faina eram menos abundantes e generosos para os pescadores. Funcionando como uma cooperativa de consumo e, já nessa altura, um exemplo de solidariedade e responsabilidade social, cada pescador pagava o que podia para o benefício de todos.

Os anos foram passando. O caminho do desenvolvimento do Montijo levou um rumo distinto. A atividade piscatória, apesar de ainda hoje se manter, tornou-se cada vez mais residual e o papel da SCUPA enquanto fonte de previdência dos pescadores deixou de fazer tanto sentido.

Como não poderia deixar de ser, uma associação formada por pessoas habituadas a ter a resiliência e a capacidade de reinvenção no seu ADN, conseguiu direcionar o foco da sua ação para novas atividades, tendo-se constituído como um dos pilares da cultura no Montijo.

Exemplo disso é a participação ativa e essencial nas Festas Populares de São Pedro, nomeadamente em três momentos de maior importância na programação das festas: a procissão fluvial, a procissão noturna e o almoço da classe piscatória. Três momentos emblemáticos e representativos das tradições e da verdadeira essência das nossas Festas de São Pedro.

Ao longo de mais de um século, a SCUPA tem sabido assumir o seu papel de guardiã das memórias, das histórias e das tradições ligadas à classe piscatória e ao Bairro dos Pescadores. Aliás, é neste bairro que tem a sua sede e o Museu do Pescador, este último instalado em edifício da Junta da União das Freguesias de Montijo e Afonsoeiro, que está assim ao serviço da cultura na nossa terra.

Basta uma visita atenta a este espaço museológico e as centenas de objetos e artefatos que compõem a sua coleção para sentirmos o papel preponderante que os pescadores e a arte da pesca tiveram e têm na construção daquilo que foi Aldegalega e que é hoje o Montijo.

São memórias de tempos áureos da classe piscatória, tempos de labuta diária e dura no Rio Tejo, o rio que está ali mesmo ao lado e que continua a ser vivido e celebrado com especial importância por quem nasceu, cresceu e sempre viveu no Bairro dos Pescadores.

Todas as associações, sem exceção, da nossa freguesia têm a sua história e importância. Todas são fundamentais para a dinamização cultural da nossa terra. A SCUPA assume o papel adicional de ser essencial na preservação da identidade do Montijo. Termino, por isso, deixando um profundo reconhecimento e agradecimento a todos os antigos e atuais dirigentes da SCUPA, aos seus associados e amigos por todo o trabalho que tem desenvolvido em prol do Montijo e por continuarem a fazer da SCUPA uma casa de cultura e de memória. 

Rui Rosado

Presidente da Marinha do Tejo

A SCUPA, associação centenária do Montijo, continua a crescer, a evoluir e a manter a sua importância na preservação da tradição piscatória, mas também da cultura e identidade do Montijo, do Tejo e das suas comunidades ribeirinhas.

Importa recordar e homenagear todos aqueles que ao longo de várias gerações fizeram desta associação um espaço de solidariedade, fraternidade e de tradição. Com a sabedoria de saber mudar, mantendo a comunidade viva na relação com o rio, congratulamos os seus corpos diretivos e associados que preservam a vontade de manter vivas as tradições do Tejo.

A SCUPA vive o Tejo, aproxima os mais jovens do saber navegar, do sentir o território fluvial e a via da água como parte de si.

As embarcações típicas, os catraios, as canoas, os botes e os varinos continuam vivos na memória, mas também no presente, para que se continue a fazer história e a preservar o património.

A Marinha do Tejo estará sempre ao lado SCUPA na promoção das embarcações típicas do Tejo e na aproximação das comunidades ao saber navegar, para que juntos possamos valorizar a nossa identidade e tradição marítimo-fluvial local, regional e nacional.

Viva o Tejo, Viva o Montijo e Viva a SCUPA.

Bem hajam.

“Marinha do Tejo”

Jorge Couves

Jorge Couves, nasceu no Montijo, a 10 de dezembro de 1946, no seio de uma família de pescadores. Ainda estava na escola quando começou a acompanhar o pai nas lides piscatórias e, desde então, toda a sua vivência laboral se desenvolveu em torno dessa atividade do arrasto: É uma arte especial, é uma arte que é arrastada pelo próprio barco, é uma rede que vai a arrastar no fundo, no leito do rio e o barco é que faz… um saco. A rede vai a trabalhar no fundo, o peixe entra e fica no saco (…) Toda a porcaria que tiver no fundo do rio (é arrastada pela rede) … porque estes barcos que vieram, os catamarãs, destruíram o leito do rio todo.

Antigamente, atacaram o arrasto, porque o arrasto… só é praticado por pessoas… como é o meu caso, que têm licença especial. Esta arte é muita antiga, porque as pessoas que agora começam a trabalhar na pesca (segundo o informante, não lhes é concedida a licença para praticar a arte do arrasto). É uma arte que está a acabar, é para acabar. Eles agarram-se ao tal problema que o arrasto destrói e vai arrastando o… leito do rio. Destrói mais num dia um catamarã… vou lhe dar um exemplo: o catamarã, num dia quando a maré está vazia, está a água caída só no canal e destrói mais numa viagem do que destrói o arrasto. O catamarã revolve o leito todo quando ele vai a passar, vai revolvendo tudo. Portanto, quando nós… quando os catamarãs começaram a aparecer aí, nós começamos a apanhar muito coisa antiga, que estava encerrada no fundo do rio. (começaram a aparecer) potes de antigamente de pôr o peixe, coisas em barro, cheguei a apanhar inteirinhos, mas conforme pegávamos (desfaziam-se).


As outras artes é a arte de largar as redes, já não é o barco a puxar, largam-se para dentro da água num comprimento de 200, 300 metros; larga-se a rede em sítios próprios e fica ali umas horas ou até de um dia para o outro… se forem águas curtas, pode-se deixar de um dia para o outro. Tem que ficar sinalizada, fica lá e no outro dia vamos lá, recolhemos o peixe para dentro (da embarcação).


Jorge Couves afirma que, quando foi proibida a arte do cerco, teve que optar por outras artes, enquanto que a maioria dos pescadores abandonaram as lides piscatórias: Acabou o cerco e eu pensei em governar-me sempre sozinho, nunca pensei em sair da pesca… 80% dos pescadores aqui no Montijo saiu quando acabou o cerco, saiu tudo, foi tudo embora (…) como não tinha condições para a pesca, uns emigraram, outros foram para a Transtejo, outros foram para os batelões. 80% foi embora, ficou aí poucos.”


O informante lembra-se da devoção que os pescadores tinham pala Nª Srª da Atalaia e a homenagem que lhe prestavam na altura das festas, como refere: “Era como a festa da Atalaia, não havia nenhum tempo, e iam a pé para a Atalaia, mas hoje já não (…) Mas, quando acontecia alguma coisa de mal no mar e que as pessoas se salvavam, iam logo à Nª Sra. Da Atalaia… quando alguém se salvava.